quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Metamorfose do vampiro literário (part. VI)



Semelhante ao seu parente folclórico,ao longo de mais de dois séculos o vampiro literário vem sendo capaz de assumir diferentes formas. Uma análise da literatura de vampiros dos seus primórdios nos fins do séc. XVIII até o início do séc. XXI mostra que, enquanto produto histórico-cultural, o vampiro passou de uma criatura cadavérica em farrapos para um ser sofisticado e angustiado por dúvidas existenciais. Nesta trajetória, convenções literárias foram adotadas, alteradas ou abandonadas,levando-o a se tornar uma imagem especular da nossa sociedade.

Seguindo o pioneirismo,já comentado,da investigação ocidental do fenômeno da criatura sugadora de sangue, a Alemanha introduziu o tema do vampiro na literatura em 1748,dois anos depois da obra de Calmet. Abordando o personagem de forma metafórica,o curto poema "O vampiro" ("Der Vampir"), de Heinrich August Ossenfelder inaugurou a literatura vampírica ao mostrar um amante feroz que nutre desejos de vingança contra a amada pelo fato dela ter seguido o conselho da mãe para abandoná-lo devido às suas origens estarem ligadas a uma região repleta de vampiros.Vinte e cinco anos depois, Gottfried August Burger lanço o poema "Lenore" (1773), no qual um morto retorna para levar a sua amada para o altar. Apesar de não tratar diretamente de vampiros, a abordagem de dois temas caros a essa literatura - o amor e a morte -,aliado à eficaz construção de uma atmosfera gótica,fez com que "Lenore" exercesse um profundo impacto no gênero vampiresco. Uma das frases mais conhecidas do romance Drácula - "Os mortos viajam depressa" - foi retirada deste poema. Muito mais do que isso,porém , a influência da balada de Burger pode ser realmente percebida em dois trabalhos chave da literatura de vampiros nos primeiros momentos do Romantismo: Os poemas "A noiva de Corinto"(1797),do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe, e "Christabel" (1797-1816),do inglês Samuel Taylor Coleridge.

Escrito meio século depois do poema de Ossenfelder, e exato um século antes de Drácula, de Bram Stoker, "A noiva de Corinto" é considerado o primeiro poema de vampiro por usar de forma direta o personagem,neste caso, uma vampira. Além disso, a obra de Goethe introduziu a ênfase no elemento sexual do vampiro. A partir deste ponto,cria-se um fosso entre a imagem do vampiro folclórico, traduzida em um cadáver ambulante,vestido em farrapos,e a representação do vampiro literário, um sedutor,sociável e de sexualidade inquieta.

Baseado em uma narrativa do folclore grego, " A noiva de Corinto"conta a história da jovem virgem Fillinion,que retornou do mundo dos mortos para desfrutar dos prazeres sexuais que não teve em vida. Ela se dirige à pousada de seus pais e seduz o também jovem Machates,que se encontra hospedado no local. Desmascarada por seu pai e sua mãe, a vampira retorna para o túmulo e lá tem o seu corpo destruído.

Além da introdução do elemento sexual, a importância do poema de Goethe pode ser medida pelo fato de que ele pode ter fornecido a base para a criação de "Christabel",poema que apresentou o vampiro pela primeira vez à literatura inglesa e criou a temática do relacionamento lésbico-vampírico, da qual a novela Carmilla (1872),do escritou irlandês Sheridan Le Fanu, é a obra mais significativa.

Neste poema, o leitor conhece a história da jovem Christabel que se envolve com uma mulher chamada Geraldine. Após ser convencida pela misteriosa personagem,a moça e Geraldine se despem,e a jovem percebe a pele engelhada da mulher e experimenta um transe, início de uma longa e ambígua cena de caráter erótico. Ao acordar, Christabel sente um imenso sentimento de culpa ao passo que Geraldine se levanta rejuvenescida. Levada ao castelo do pai de Christabel, Geraldine se envolve com o pai da anfitriã e parte do castelo com ele. Mesmo não citando textualmente o termo vampiro para designar a sua personagem,não resta dúvida de que Coleridge tinha em mente a temática do vampiro quando compôs "Christabel".

Chama a atenção neste ponto o fato de que duas das obras mais representativas do início da literatura de vampiros apresentam como personagens principais vampiros do sexo feminino.Essa característica faz um paralelo com as primeiras narrativas mitológicas desta criatura,representadas por Lilith, Lamia e Kali,dentre outras. Tal particularidade decorre do uso de dois temas recorrentes do Romantismo: a bela defunta e a mulher fatal. Em "Thalaba the Destroyer" (Thalaba o Destruidor) (1801),do poeta inglês Robert Southey,por exemplo,o herói busca pela espada que trará um fim aos mágicos que assassinaram seus parentes. Nesta jornada ele se refugia da chuva em uma câmara mortuária e encontra um vampiro. Este vem a ser a sua falecida amada, a bela Oneiza,cujo cadáver fora possuído por um dêmonio. Demonstrando que Southey estava familiarizado com a literatura acadêmica setecentista sobre vampiros, Thalaba expulsa o demônio do corpo da amada transpassando-o com uma lança. Inspirado em As mil e uma noites, "Thalaba o Destruidor",também evidencia a influência do Oriente sobre o Romantismo inglês como lócus do exótico e do sobrenatural.Nesta mesma linha poética orientalista, "The Giaour"(1813),de Lord Byron, descreve a maldição lançada sobre um cristão por um muçulmano.Após a sua morte,o giaour ( infiel,inimigo da fé cristã) voltaria como um vampiro. Na mesma época de Byron,outro poeta da Inglaterra - John Stagg - publicou "The Vampyre" (1810) que se destaca pelo uso das convenções sobre vampiros do leste europeu.

Gradualmente,ao longo do séc.XIX, a representação do vampiro masculino predominou sobre o feminimo. Neste aspecto,duas exceções da poesia romântica sobre vampiras na Inglaterra e na França, respectivamente,foram "A Lamia" (1819), de John Keats e "As metamorfoses do vampiro" (1857), de Charles Baudelaire. No primeiro Keats usou o tema do vampiro como uma metáfora das relações humanas a partir da lenda grega da Lamia contada no capítulo 25 do quarto livro de Vida de Apolônio produzido por volta do fim do séc. 2 da nossa era pelo grego Filóstrato. No segundo, Baudelaire explorou a sexualidade da figura vampiresca para descrever o sexo entre dois amantes. Este poema,dentre outros publicados  em As flores do mal (1857), rendeu ao poeta francês um julgamento por obscenidade.Dignos de menção também são os poetas escritores Edgar Allan Poe e Théophile Gautier. Poe abordou de forma indireta o tema do vampiro feminino em contoscomo "Berenice", "Morela" e " Ligeia", publicados ao longo dos anos da década de 1830. Gautier,por sua vez,valeu-se da temática em "A morta amorosa"(1836).

Além do uso do tema da bela defunta e da mulher fatal,o Romantismo também legou à literatura vampírica a imagem romântica do vampiro como um aristocrata sofisticado que consegue se infiltrar na sociedade e fascinar a todos com sua sedução e exotismo. O início deste processo se encontra no conto "O vampiro" (The vampyre") (1819), de John Polidori, responsável pela introdução da criatura na prosa de ficção em língua inglesa. Um verdadeiro divisor de águas na literatura de vampiros, " O vampiro" estabeleceu importantes elementos que foram aproveitados ou modificados em subsequentes criações artísticas,como Carmilla e Drácula. Por exemplo, o vampiro é um morto reanimado; ele não é uma criatura do passado ,mas sim do presente,passeando incólume entre suas prováveis vitimas. Ele não ataca simplesmente visando o sangue, pois há presença de um elemento erótico entre ele e sua vítima e os elementos eróticos ou libertinos ganham mais destaque na narrativa do que a necessidade de sangue.

A história de Polidori foi publicada na edição de abril da revista inglesa New Monthly Magazine,com a autoria atribuída a Lord Byron. O poeta inglês correu para desmentir o fato, o que acabou por revelar que o verdadeiro autor por trás do conto, o médico particular de Byron. Polidori tinha pretensões artísticas e aproveitou um fragmento de uma história narrada por Byron para desenvolver a narrativa do vampiro Lord Ruthven. Esta personagem foi moldada a partir do próprio Byron e, como  famoso poeta inglês, era uma elegante figura de grande cultura e educação refinada,mas que escondia uma natureza selvagem,libertina, profundamente narcisista e de comportamento irascível,traços estes que, paradoxalmente tornavam Byron e seu sósia literário, deliciosamente fascinantes. Refletindo a estética romântica de seu tempo o conto de Polidori instituiu o vampiro como um rebelde além das normas sociais burguesas. Característica que ganharia uma nova dimensão no Reino Unido a partir da segunda metade do séc. XIX.

A literatura de vampiros no Reino Unido durante a era vitoriana se desenvolveu sob a sombra das transformações sociais decorrentes da segunda Revolução Industrial, da expansão do Império Britânico, do impacto de novas teorias sobre a evolução do homem e da constituição do inconsciente humano, de assassinos em série lendários como o barbeiro Benjamin Barker e Jack o Estripador e do rígido código moral da sociedade vitoriana concernente ao sexo e ao papel da mulher. A época que apresentou ao mundo a mais importante obra da literatura de vampiros - Drácula - também foi palco de trabalhos que ajudaram Bram Stoker a delinear o seu romance gótico, tais como Varney o vampiro (1847), de  James Malcolm Rymer e Carmilla (1872), de Sheridan Le Fanu.

Varney o vampiro foi um dos vários produtos da mecanização da imprensa na Inglaterra,ocorrida ainda no início do séc. XIX. Esta inovação tecnológica baixou enormemente a produção de revistas e jornais e promoveu o surgimento de novas publicações que atendiam aos gostos de uma massa letrada pobre, mas de crescimento constante. Chamadas de penny dreadfuls (revistas e folhetos de baixa qualidade), estas produções apresentavam histórias de enredo circulante e tom melodramático com ênfase no grotesco Sweeney Todd, the Demon Barber of  Fleet Street (1846-48), de Tomas Peckett Prest e Varney o vampiro foram dois dos vários penny dreadfuls de enorme sucesso no período criados com o objetivo único de entreter seu público alvo.

O primeiro romance de vampiros da língua inglesa foi publicado ao longo de 109 capítulos semanais em meados de 1840 e ajudou a disseminar a figura do vampiro como um dos principais ícones da literatura gótica. Após a periodização, o trabalho foi publicado em um volume único de oitocentas páginas. O enredo girava ao redor da vida do vampiro Varney e seu relacionamento com a família Bannerworthy. Ao contrário da imagem sedutora de Lord Ruthven, Varney possuía unhas longas,pele pálida,olhos brilhantes e metálicos e, diferente dos outros vampiros literários que o antecederam dentes pontiagudos como presas, com os quais atacava as vítimas, deixando-as com as, até então inéditas, marcas no pescoço. Após Varney o vampiro as produções literárias sobre estes seres, especialmente Carmilla e Drácula passaram a dar destaque aos dentes salientes e pontiagudos tão característicos destes personagens enfatizando,neste processo, a natureza bestial do vampiro.

Muito mais do que o romance de James Malcolm Rymer, a novela Carmilla, do irlandês Sheridan Le Fanu exerceu papel chave na elaboração do clássico de Bram Stoker. De fato, segundo alguns críticos como Christopher Frayling e J. Gordon Melton apontam, a ideia de um romance ocorrido a Bram Stoker em um pesadelo após a leitura da história de Le Fanu. Motivações à parte, é fato que vários elementos de Carmilla estão presentes em Drácula, tais como, a ambientação da história no leste europeu, a transformação do vampiro em outros animais, a presença de um investigador ocultista caçando o vampiro e o uso da estaca para eliminar a criatura. Todos estes elementos estão a serviço da exploração da temática do relacionamento lésbico-vampírico entre a vampira Carmilla e a jovem Laura.

Mas a prova maior da força da narrativa de Le Fanu sobre Stoker está no conto " O hospede de Drácula" (1914).Publicado postumamente pela viúva de Bram Stoker,este material ainda provoca debates entre os críticos pela sua posição em relação a Drácula,visto que ele não apresenta estrutura similar ao romance e, por isso,não poderia ser o capítulo introdutório omitido da obra, como alega a esposa de Stoker. Independente deste fato,pórem,as semelhanças encontradas no conto com Carmilla são irrefutáveis.

Um comentário:

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